terça-feira, 19 de junho de 2007

4.

Houve então algo real no meio de tantas ilusões? Sim, houve o sofrimento.
Houve o sofrimento que hoje não sei se sinto ou se sou. Cada palavra dita na hora errada, cada gesto equivocado, cada afirmação mentirosa: tudo isso eu sei antes de fazer. Sei que vai acabar mal, sei que o mundo vai desabar.
Quero uma desculpa para chorar à noite. Quero poder chorar sem me sentir idiota por estar chorando. Minhas razões são grandes, sim, mas só o são para mim, afinal: elas são minhas.
Sou eu quem está sentindo a dor da perda, da rejeição e da saudade- tudo junto. Sou eu que estou quebrada, sangrando, em um canto, encolhida.
Não é egocentrismo não. E se for, qual o problema? Eu preciso pensar em mim antes do resto, porque são os meus olhos que tenho que encarar todos os dias.
Eu falo e falo e falo- tanto! Mas não engoli as duas verdades que foram jogadas em mim: amarrada em uma linha de trem.
Não quero saber do meu pai morto. Não quero entender que não vou mais ouvir sua voz. Não quero sentir a dor concreta da perda real. Não aconteceu, não aconteceu, não aconteceu. Vou repetir baixinho todas as noites até que algo maior aconteça, ou até que minha garganta sucumba ao tamanho da ausência e deixe minha perda ir para todos os cantos do meu corpo.
Não quero saber que nunca terei companhia na dor. Vou continuar querendo e querendo e querendo: uma mão estendida, um colo disponível, um conforto de amor.
É como o vômito que chega ao fim da garganta e depois volta. É como essa ânsia, mas ao contrário: de fora para dentro.
Às vezes quase sinto a dor que sei vou ter que sentir. Mas logo depois a cuspo de novo, não consigo engolir tantas incertezas sobre a vida e a morte.
Não, não quero saber se outras pessoas já passaram por isso. Eu estou passando por isso agora. Eu perdi meu pai: meu pai que era único e nunca mais vai voltar.
A solidão me engolfa e eu fico sempre presa ao instante em que estamos caindo. Mas o desespero não é do me machucar, sei que vou; o desespero é o de ver os dias passando e me distanciando da memória que não quero nunca esquecer.
Tenho medo de esquecer seu rosto, sua voz, seu abraço. Tenho medo de nunca cair e ficar para sempre com o rosto estampado de incertezas.
Nada pode expressar o tamanho da minha dor. Nem as linhas mais tristes, nem os cortes mais profundos. Ninguém nunca vai entender sem sentir, e ninguém nunca vai sentir como eu.
Sei que o amor que sinto por ele nunca mais vai parar de exalar de todos os meus poros, mas não vai ter nada de volta, entende? Ninguém vai estar atrás da porta, na outra linha, nos outros braços apertando sua filha: eu.
Quero tornar real. Quero um enterro, uma cerimônia, uma tatuagem: uma imagem concreta da dor.
Aquele que sempre esteve todo ouvidos para mim não está mais lá. Não poderei nunca mais ligar para seu número- o único que sei décor- e ouvir sua voz me confortando.
Não tem mais ninguém. Não tem mais ninguém. Nunca mais vai ter alguém.
A solidão é a maior do mundo. Se sempre estive sozinha, também sempre tive meu pai ali- pronto para me atender. Agora não tem mais ninguém. Não tem mais ninguém. Não tem mais ninguém.
Nem me importo mais com repetições, tudo sempre foi uma repetição da dor, da dor, da dor.
Mas a dor nunca foi tão real, tão brutal, tão crua.
Ter a certeza de que isso nunca vai passar não me atormenta. Atormenta-me o: vai diminuir.
Não quero que diminua. Não quero trair suas lembranças e não chorar ao lembrar de seu abraço confortador ou olhar para as fotografias do passado.
O que vai acontecer daqui para frente? Não sei.
Não sei se vou aprender a andar com o peso da saudade. Sinto que até o meu jeito de andar mudou: eu me arrasto.
E minhas palavras, são tão pequenas. Sinto-me culpada por não conseguir expressar direito o tamanho da importância que ele teve para mim, e sempre vai ter.Vou carregar-te comigo para sempre, pai. Para sempre: mesmo sem saber o que isso significa.

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